A quarentena e o pão nosso de cada dia
A pandemia nos confronta com uma situação inédita e de consequências tanto imprevisíveis como inéditas para nosso futuro imediato. Sobre informações deste campo parece haver um amplo consenso. Neste breve escrito quero apenas centrar-me em dois aspectos afortunados de nosso trabalho como analistas e uma reflexão sobre o uso da linguagem que surgiu como efeito do isolamento pelo qual estamos passando. A primeira grata constatação, é que quase todos os analistas dos quais tenho notícias puderam manter seu trabalho por meio da utilização de ferramentas virtuais. Isto nos dá uma privilegiada tranquilidade no que se refere a nosso meio de subsistência, em comparação com vários âmbitos profissionais que não puderam gozar desta possibilidade. O surgimento abrupto, amplo e inesperado desta forma de trabalhar no panorama da tarefa cotidiana dos analistas, não se pode pensar nele sem considerar as consequências decisivas deste fato sobre discussões já em curso há algum tempo na comunidade analítica. Nelas se debatia, com intensidade crescente, as semelhanças e diferenças, vantagens e desvantagens deste tipo de tratamento à distância. Como tende a ser habitual neste tipo de controvérsias, os grupos se repartiam entre os entusiastas promotores, quando não propagandistas, das novas formas de abordagem e os não menos enérgicos defensores das condições presenciais, imprescindíveis a seu entender, para poder levar adiante uma cura concebida como analítica. Somado a isto, todas as diferenças aumentavam e incrementavam-se quando tratavam das análises de formação que deveriam ser reconhecidas como tal pelas Sociedades componentes da IPA. No cenário onde se passavam estas discussões, a irrupção das condições atuais funcionou como um vento de furação que põe à prova a consistência dos cimentos conceituais que sustentam nossa prática. A aceleração assim imposta, por situações de fato, ao debate em curso, apresenta como improvável (entendo que também não desejável) imaginar uma volta às condições do “statu quo ante” do furação. O retorno às condições presenciais em nossa práxis deve, necessariamente, incluir uma reflexão sobre as noções que dão fundamento à nossa disciplina e as relações que mantemos com elas. O contrário seria deixar passar a oportunidade de ter a experiência do vivido. Necessidade de que, historicamente, temos dado mostras de não estar isentos e que poderíamos reproduzir em um cenário de volta ao anterior. Com a convicção de estar já vacinados contra qualquer ameaça de mudança, aferrados à onipotência de crenças dogmáticas, a prova de qualquer devir temporal. Um “benefício” colateral constatável (contraponto com a noção de “dano”), é a maior proximidade, alfabetização e familiaridade com os meios tecnológicos, impostas pelas circunstâncias, para muitos de nós agora incluídos na categoria de “população de risco” (de fossilizar-nos?). Benefício que deveria contribuir para acalmar a inquietude existente do “agement” em nossa comunidade analítica próxima. A segunda boa nova é a comprovação, com satisfação e surpresa em alguns casos, de que o dispositivo inventado por Freud e logo formalizado por Lacan como “discurso analítico” funciona e como práxis produz efeitos, ainda que em condições aparentemente muito distantes do contexto onde foi idealizado. É inquestionável que a presença do corpo do analista e do analisante em um espaço compartilhado (“two bodys in the same room” como especifica o “Procedural Code” da IPA) tem consequências profundas, e mais além do perceptível, que condicionam e incidem sobre a possiblidade do intercâmbio analítico. É claro, ademais, que os efeitos dessa presença deverão “entrar na conversa”, para poder ser abordados, da instalação e decolagem da transferência, necessários para dirigir a cura. Tendo sempre presente, claro está (está?), que se trata, em nossa práxis, de um sujeito falante (ao que Lacan batiza com o neologismo “parlêtre”), afetado pela palavra no campo da linguagem, e que nossa responsabilidade é sempre impedir que se reduza a um corpo-organismo biológico. Isso faz imprescindível que se interroguem os significantes como “corpo real” ou “presença real”, com toda a complexidade de suas ressonâncias. Entre outras aquela onde Lacan articula a “presença real” com o fenômeno da eucaristia (no Seminário VIII) para que não fiquemos presos nos sentidos comuns destes significantes, que cremos compreender como evidentes. Nas condições atuais, a privação desta presença se acompanha de uma quantidade de fenômenos observáveis que os analistas não deixam de destacar: os distintos modos com que os analisantes se mostram em suas telas e deixam ver o contexto em que se exibem, as inquietudes que surgem ao ser invadidos, de maneiras intrusivas, em espaços até então fora do alcance da percepção do analista. Algo semelhante acontece em relação à cena não usual em que o analista se vê levado a ter de aparecer: sua casa, suas roupas, etc. Não se trata de negar estas diferenças evidentes, nem de afirmar que tudo transcorre na análise como se nada disto afetasse seu funcionamento, senão de constatar que, ainda que em condições tão distintas, algo da psicanálise está preservado e funciona: isso que se apresenta como um dispositivo regrado de intercâmbio falado, em que alguém diz de si o que não sabe, dirigindo-o a um lugar em transferência assim instaurada, desde onde se pode responder. Quando esta resposta toma forma de uma interpretação, tem um efeito de surpresa para o analisante e para o analista. Surpresa a qual o único sujeito em análise, o analisante, responde com a produção de novas associações. Intercâmbio assimétrico por estrutura, por meio do qual o sujeito vai modificando sua distância com o inconsciente que o determina. Aquilo que é o mais íntimo e, ao mesmo tempo, o mais estranhamente estrangeiro. Que este dispositivo se instale e funcione, não é algo que dependa apenas, nem sequer principalmente, de condições exteriores ao mesmo, senão fundamentalmente de que o analista ocupe o lugar que o dispositivo lhe confere na transferência. Daí nossa responsabilidade. Por isso creio que não se trata de nos sujeitarmos à pureza de preceitos técnicos nem de nos fascinarmos pela novidade de modificações impostas pelas circunstâncias. Eric Laurent, parafraseando Lacan, afirma algo assim como termos que saber nos servir do Skype para poder prescindir dele. Na mesma linha, concordo com Miguel Bassols que sustenta que, ainda que a infecção viral seja um fenômeno biológico, a pandemia é um acontecimento de ordem política, um fato de discurso, em escala mundial, que instala significantes-mestre que o discurso psicanalítico deve questionar, interrogar, como, por exemplo, “distanciamento social”. Significante que, em nome do bem de todos, promove decisões que tendem a impor uma biopolítica de gozo dos corpos. Assim, a pandemia que, nós analistas, enfrentamos em nossa práxis é a que Serge André, que faleceu em 2003, definiu como “a pavorosa prisão da linguagem unificada e o fantasma estandardizado, em que nos aprisiona a ditadura do discurso comum” (e essa é a pior das quarentenas que cotidianamente confina tanto nossos movimentos como nossos modos de pensar). A essa intenção de submissão do sentido comum, Lacan respondeu com sua proposta de “heresia”, em que ressoa seu tríptico RSI, no equívoco de sua pronúncia em francês: “her-es-ie”. A esta proposta pandêmica permanente de significantes-mestre, o discurso da análise há de responder com questionamentos que façam vacilar o sentido ordenado, promovendo um giro que, histerificando o discurso, facilite a entrada em análise. É esta via que determina que o que goza do sintoma “entre na conversa”. Creio que a alegria pela satisfação de constatar que a psicanálise funciona, apesar do contexto imposto tanto pela época como pela pandemia, é algo compartilhado por muitos colegas e me atreveria a conjecturar que Freud sentiria isso de um modo similar. Penso que longe de anatemizar o acontecido como um desvio da especificidade de sua criação, como aconteceu com Adler e Jung, leria o fenômeno como uma confirmação a mais da solidez e consistência de sua invenção. Por último, referir-me-ei a uma experiência do início deste confinamento, nos primeiros dias de abril. Iniciou-se, na ocasião, entre vários colegas uma conversa denominada “intercâmbio poético” na qual se propunha enviar um texto, poema ou verso que “nos tivesse afetado em tempos difíceis”, sem pensar muito, a um nome proposto em uma lista inicial, sem conhecer o destinatário. Desta maneira começava um intercâmbio no qual logo ao enviar o texto solicitado, se recebia uma série de respostas similares vindas dos participantes do jogo proposto. O exercício coletivo, criativo e estimulante, tal como se fosse idealizado por seus criadores, provocou em mim muitas ressonâncias. Quero destacar uma que, além do gozo da leitura suscitado por belos textos em geral, mergulhou-me numa série de reflexões sobre a experiência da linguagem nos seres falantes e nos analistas em particular. Ocorre que, no começo recebi um texto atribuído a Borges, belamente escrito diga-se de passagem, e que gerava em mim uma inquietude não muito precisa, que foi se esclarecendo aos poucos: havia algo no texto que me fazia duvidar que viesse da pluma de nosso poeta maior. Sobretudo era difícil reconhecer o espírito borgiano na letra esperançosa e otimista do conteúdo proposto pelo texto como ensinamento de vida e longe da ironia profunda e do humor ácido que são o selo de autenticidade das obras de Borges. Assim, vi-me levado a pensar que a referência a “tempos difíceis”, formulada na proposta do jogo e que seguramente aludia ao que o confinamento provocava: incertezas quanto ao nosso futuro, inquietantes elucubrações sobre a que nos confrontará o tempo futuro etc. poderiam ter influído na escolha destes textos esperançosos e tranquilizadores, pela sabedoria que tentavam passar pelo seu conteúdo, com tinturas francamente espirituais, se não religiosas. Depois aconteceu algo similar com um texto que me enviaram como sendo de Neruda: “Queda Prohibido”. Auxiliou-me então o que havia acontecido antes com o texto de Borges, já que minha familiaridade com a poesia de Neruda é muito pouca. Parecia-me estranho que um poeta se visse levado a produzir esse tipo de textos. Foi então que apelando, como no caso anterior, ao saber de nossa época, Google, encontrei o mesmo tipo de resposta. Em ambos os casos se tratava de textos que circularam como atribuídos aos poetas mencionados, mas que eram de outros autores. Efetivamente, o texto atribuído a Borges vinha de uma escritora norte-americana Nadine Stair, que o havia publicado em 1978 e o atribuído a Neruda era de Alfredo Cuervo Barrero, jovem escritor que, ao publicá-lo, nunca havia lido Neruda. Lembrei, então, o que já sabia: a experiência da linguagem na palavra profética é essencialmente diferente da palavra do poeta. A palavra de um profeta procura exercer um poder performativo sobre o futuro, modelando-o com base em uma palavra divina, que procura gerar crença e convicção em um sentido único que, apontando para o bem de todos, funcione como orientação ou guia de vida. O significante “profeta” deveria ser entendido, entretanto, na ressonância do sentido portenho, que faz eco com as ambições acadêmico-pedagógicas de muitos psicanalistas, pelo que ele poderia incidir em sua posição na hora de conduzir um tratamento. Há muitos anos, em um trabalho sobre a interpretação, utilizei como epígrafe uma frase de Santiago Kovadloff: “Um poeta não é um pregador. Não diz coisa importantes. Remete a coisas importantes por meio do que diz”. Fica claro que a relação com a linguagem implicada aqui, a que deveria reger a tarefa interpretativa na práxis psicanalítica, é fundamentalmente diferente da anteriormente mencionada, na qual a prevalência do sentido busca produzir uma fascinação hipnótica. No seu esquema, o quadrípodo dos discursos onde Lacan da conta das distintas relações com a linguagem antes mencionadas, preserva-se o lugar de vazio de sentido que impede a cada discurso fechar-se sobre si, fazendo o giro de um ao outro que o discurso do analista deve preservar. Coerente com este ensino, Colette Soller postula seu neologismo: “acteísmo”, (condensando acto e ateísmo), para indicar-nos que é pela via de um ato que aponte para o real, e, portanto, fora do sentido, que há de formular-se uma proposta de final não religiosa para as análises. A queda do sentido junto com a do saber do Outro, que seria sua garantia, é consequência de um efeito de estrutura, sendo o ateísmo do sujeito não uma questão de crença, não uma profissão de fé ou sua negação, mas o que está em jogo. Penso que deste modo abre-se para nós a porta para uma ética do desejo que não é a do bem de todos, que não é, por certo, a de um ideal de saúde mental ditado por uma psicanálise médica e não laico (profano, ateu), sendo uma porta que depende de nós mantê-la aberta em um intercâmbio presencial ou virtual dependendo da situação, para que cada analisante possa ver-se confrontado com a alternativa de uma escolha possível, mas não prescritiva. Em momentos em que as prescrições estão na ordem do dia, a via singular que a análise propõe torna-se cada vez mais necessária. Em cada caso, cada dia, cada sessão.